Analisaremos agora teses, teorias que tratam dos Aparelhos Ideológicos de Estado, usando como base e influência as idéias marxistas.
Presumindo que toda formação social surja de um modo de produção dominante, podemos dizer que o processo de produção põe em movimento as forças produtivas existentes em sob a vigência de relações de produções definidas.
Daí decore que, para existir, toda formação social, ao mesmo tempo que produz, e para poder produzir, tem que reproduzir as condições de sua produção. Portanto, tem que reproduzir:
1 – as forças produtivas;
2 – as relações de produção existentes.
O economista primário sabe que, a cada ano, é essencial prever o que foi usado ou gasto na produção: matérias-primas, instalações fixas (prédios), instrumentos de produção (máquinas) etc. Digo o economista primário = capitalista primário porque ambos expressam o ponto de vista da empresa, contentando-se em raciocinar, simplesmente, nos termos da prática de contabilidade financeira da empresa.
Os salários aparecem na contabilidade de cada empresa, mas como “capital aplicado em mão-de-obra”, e não como uma condição da reprodução material da força de trabalho.
Entretanto, é exatamente assim que ele “funciona”, pois os salários representam apenas a parcela do valor produzido pelo dispêndio da força de trabalho, indispensável a sua reprodução.
Ao contrário das formações sociais caracterizadas pela escravidão ou pela servidão, a reprodução da qualificação da força de trabalho tende cada vez menos a ser fornecida in loco (o aprendizado dentro da própria produção), sendo mais e mais obtida fora dela: através do sistema educacional capitalista e de outras instâncias e instituições.
Além das técnicas e conhecimentos fundamentais (ler, escrever e contar), a escola também ensina as “normas” do bom comportamento, ou seja, a atitude a ser observada por cada agente na divisão do trabalho, conforme o emprego para o qual ele esteja “destinado”: regras de moral, consciência cívica e profissional, que na verdade equivalem a normas de respeito pela divisão técnica e social do trabalho, e, em última instância, a normas da ordem estabelecida pela dominação de classe. A escola ensina a “habilidade”, mas sob formas que asseguram a sujeição à ideologia dominante ou o domínio de sua “prática”.
Marx concebeu a estrutura de cada sociedade como sendo constituída por “níveis”, ou “instâncias”, articulados pro uma determinação específica: a infra-estrutura ou base econômica, e a superestrutura, que por sua vez contém dois “níveis”, ou “instâncias”: a jurídico-política (o direito e o Estado) e a ideológica (as diferentes ideologias, religiosa, ética, legal, política, etc).
O Estado é, antes de tudo o que os clássicos marxistas chamaram de Aparelho de Estado. Esse termo significa: não apenas o aparelho especializado (no sentido escrito) cuja existência e necessidade reconhecemos pelas exigências da prática jurídica, isto é, a polícia, os tribunais e os presídios, mas também o exército,q eu intervém diretamente como força repressora suplementar em última instância, quando a polícia e seus corpos auxiliares especializados são “superados pelos acontecimentos”; e, acima desse conjunto, o chefe de Estado, o governo e a administração.
Temos todas as razões para crer que as grandes descobertas científicas passam inevitavelmente por uma fase chamada “teoria descritiva”, a primeira tese de qualquer teoria, transitória, necessária ao desenvolvimento da teoria. A teoria descritiva do Estado é correta, já que é perfeitamente possível fazer com que a vasta maioria dos fatos observáveis no domínio a que ela concerne corresponda à definição que ela fornece de seu objeto.
Mas a teoria descritiva do Estado representa uma fase na constituição da teoria, a qual exige a “superação” dessa fase. Pois está claro que, se a definição em questão realmente nos fornece meios para identificar e reconhecer os dados da opressão, relacionando-os com o Estado concebido como Aparelho Repressivo de Estado, essa “inter-relação” dá margem a um tipo muito especial de evidência, sobre o qual teremos algo a dizer dentro em pouco.
Para desenvolver essa teoria descritiva numa teoria como tal, ou seja, para compreender melhor os mecanismos do Estado em seu funcionamento, cremos ser indispensável acrescentar alguma coisa à clássica definição do Estado como aparelho de Estado.
Pode-se dizer que a distinção entre poder estatal e Aparelho de Estado faz parte da “teoria marxista” do Estado.
Para resumir a “teoria marxista do Estado” neste ponto, podemos dizer que os clássicos marxistas sempre afirmaram: o Estado é o Aparelho Repressivo de Estado, o poder estatal e o Aparelho de Estado devem ser distinguidos, o objetivo da luta de classes concerne ao poder estatal e, por conseguinte, ao uso do Aparelho de Estado pelas classes que detêm o poder estatal em função de seus objetivos de classe, e o proletariado deve tomar o poder estatal para destruir o Aparelho de Estado burguês existente e, numa primeira fase, substituí-lo por um Aparelho de Estado proletário e muito diferente, e depois, em fases posteriores, acionar um processo da destruição do Estado.
Os clássicos Marxistas trataram o Estado como uma realidade mais complexa do que a definição dele fornecida na “teoria marxista do Estado”.
Para fazer progredir a teoria do Estado, é indispensável levar em conta não apenas a distinção entre poder estatal e Aparelho de Estado, mas também uma outra realidade que está claramente ao lado do Aparelho (Repressivo) de Estado, mas não se confunde com ele, os Aparelhos Ideológicos de Estado.
Daremos o nome de Aparelhos Ideológicos de Estado a um certo número de realidades que se apresentam ao observador de imediato sob a forma de instituições distintas e especializadas. Delas propomos uma listagem empírica, que obviamente terá que ser examinada em detalhe, verificada, corrigida e reorganizada. Com todas as restrições envolvidas nessa exigência, podemos, de momento, considerar as seguintes instituições como Aparelhos Ideológicos de Estado:
AIEs: religioso, escolar, familiar, jurídico, político, sindical, da informação, cultural.
A distinção entre público e o privado é uma distinção interna ao direito burguês, e válida nos domínios em que o direito burguês exerce sua “autoridade”. As instituições privadas podem perfeitamente “funcionar” como Aparelhos Ideológicos de Estado.
O que distingue os AIEs do Aparelho (Repressivo) de Estado é a seguinte diferença fundamental: o Aparelho Repressivo de estado funciona “pela violência”, ao passo que os Aparelhos Ideológicos de Estado funcionam “pela ideologia”.
Os Aparelhos Ideológicos de Estado funcionam maciça e predominantemente pela ideologia, mas também funcionam secundariamente pela repressão, ainda que, no limite, mas somente no limite, esta seja muito atenuada e escondida, até mesmo simbólica. Não há algo que se possa chamar de aparelho puramente ideológico.
Nenhuma classe é capaz de deter o poder estatal por um período prolongado sem, ao mesmo tempo, exercer sua hegemonia sobre e dentro dos Aparelhos ideológicos de Estado.
Os Aparelhos ideológicos de Estado podem ser não apenas o alvo, mas também o lugar da luta de classes, e, frequentemente, de formas encarniçadas de luta de classes.
Em sua maior parte, a reprodução das relações de produção é assegurada pelo exercício do poder estatal nos Aparelhos de Estado – de um lado o Aparelho (Repressivo) de Estado, e de outro, os Aparelhos Ideológicos de Estado.
Todos os Aparelhos de Estado funcionam pela repressão e pela ideologia ao mesmo tempo. Enquanto o Aparelho (Repressivo) de Estado constitui um todo organizado, cujas diferentes partes centralizam-se abaixo de uma unidade de comando, os Aparelhos Ideológicos de Estado são múltiplos, distintos, “relativamente autônomos” e capazes de proporcionar um campo objetivo para as contradições, que expressam, sob formas limitadas ou extremadas, os efeitos dos choques entre a luta de classes capitalista e a luta de classe proletária, bem como suas formas subordinadas. Enquanto a unidade do Aparelho (Repressivo) de Estado é garantida por sua organização, unificada e centralizada sob a liderança dos representantes das classes ocupantes do poder, que executam a política da luta de classes das classes que estão no poder, a unidade dos diferentes Aparelhos Ideológicos de Estado é garantida, em geral sob formas contraditórias, pela ideologia dominante, a ideologia da classe dominante.
O papel do Aparelho (Repressor) de Estado, na medida em que ele é um aparelho repressor, consiste essencialmente em assegurar, através da força (física ou de outro tipo), as condições políticas de reprodução das relações de produção, que são, em última instância, relações de exploração. Não só o Aparelho de Estado contribui para grande parte de sua própria reprodução, como também, e acima de tudo, o Aparelho de Estado assegura, através da repressão, as condições políticas de atuação dos Aparelhos Ideológicos de Estado.
O Aparelho Ideológico de Estado que se instalou na posição dominante nas formações sociais capitalistas maduras, em decorrência de uma violenta luta política e ideológica de classes contra o antigo Aparelho ideológico de Estado Dominante, foi o Aparelho Ideológico escolar.
Essa tese talvez pareça paradoxal, dado que, para todo o mundo, isto é, na representação ideológica que a burguesia tentou dar a si mesma e às classes que ela explora, o AIE dominante nas formações sociais capitalistas realmente não parece ser a escola, mas o AIE político, ou seja, o regime de democracia parlamentar que combina o sufrágio e a luta partidária.
Nos bastidores de seu AIE político, que ocupa a frente do palco, o que a burguesia instalou como seu Aparelho Ideológico de Estado número um, isto é, dominante, foi o aparelho escolar, que de fato substituiu em suas funções o AIE dominante anterior, a Igreja. O par escola-família substituiu o par Igreja-família.
Todos os Aparelhos Ideológicos de Estado, sejam quais forem, contribuem para um mesmo resultado: a reprodução das relações de produção, isto é, das relações capitalistas de exploração. Cada qual contribui para esse resultado único da maneira que lhe é própria. Esse concerto é regido por uma só partitura, ocasionalmente perturbada por contradições. Não obstante, nesse concerto, um Aparelho Ideológico de Estado certamente detém o papel dominante, embora quase ninguém dê ouvidos à sua música – ele é tão silencioso! Trata-se da escola.
É pelo aprendizado de saberes envoltos no repisar maciço da ideologia da classe dominante que são, em grande parte, reproduzidas as relações de produção de uma formação social capitalista, isto é, as relações dos explorados com os exploradores e dos exploradores com os explorados.
Para Marx, a ideologia é uma montagem imaginária, um puro sonho, vazio e fútil, constituído pelos “resíduos diurnos” da única realidade plena e positiva: a história concreta de indivíduos concretos, materiais, produzindo materialmente sua existência. É com base nisso que a ideologia não tem história em A Ideologia Alemã, já que sua história está fora dela; a única história existente é a história dos indivíduos concretos, etc. Tese essa puramente negativa, pois significa: Que a ideologia não é nada, na medida em que é puro sonho; a ideologia não tem história, o que não significa, decididamente, que nela não haja história. Não tem história própria.
TESE I: A ideologia representa a relação imaginária dos indivíduos com suas condições reais de existência.
É comum chamarmos a ideologia religiosa, a ideologia moral, a ideologia jurídica, a ideologia política, se “concepções do mundo”.
Mesmo admitindo que elas não correspondem à realidade, isto é, que constituem uma ilusão, admitimos que elas efetivamente se referem à realidade, e que só precisam ser “interpretadas” para que se descubra a realidade do mundo que está por trás dessa representação imaginária desse mundo (ideologia = ilusão / alusão).
TESE II: A ideologia tem uma existência material.
As idéias ou representações que parecem formar a ideologia não tem existência ideal ou espiritual, mas material. A existência ideal e espiritual das idéias tem raízes exclusivamente em uma ideologia da idéia e da ideologia, e, em uma ideologia do que pode parecer haver fundamento essa concepção desde o surgimento das ciências, isto é, do que os praticantes das ciências representam para si, em sua ideologia espontânea, como idéias, verdadeiras ou falsas.
Essa conjectura da existência não espiritual, mas material, das idéias ou outras representações é realmente necessária para que prossigamos em nossa análise da natureza da ideologia.
Ao discutir os Aparelhos Ideológicos de Estado e suas práticas, dissemos que cada um deles era a realização de uma ideologia. Retornamos agora a essa tese: uma ideologia existe sempre num aparelho e em sua prática ou práticas. Essa existência é material.
Obviamente, a existência material da ideologia num aparelho e em suas práticas não é da mesma modalidade que a existência material de uma pedra de calçamento ou de um fuzil.
A ideologia da ideologia reconhece, portanto, apesar de sua deformação imaginária, que as idéias de um sujeito humano existem ou devem existir em seus atos, e que, quando isso não acontece, ela lhe atribui outras idéias correspondentes aos atos (mesmo perversos) que ele de fato pratica. Essa ideologia fala de atos; nós falaremos de atos inseridos em práticas. E pretendemos assinalar que essas práticas são regidas por rituais em que elas se inscrevem, dentro da existência material de um aparelho ideológico, nem que seja numa pequena parte desse aparelho: uma pequena missa numa igrejinha, um funeral, um joguinho num clube esportivo, um dia de aula, uma reunião de partido político.
Pascal diz mais ou menos o seguinte: “Ajoelhou-se, mexa seus lábios numa oração e você terá fé.”. Assim ele inverte escandalosamente a ordem das coisas, trazendo, como Cristo, não a paz, mas a discórdia, e além disso algo que dificilmente seria cristão, o próprio escândalo.
Assim, no que tange a um único sujeito (tal ou qual indivíduo), a existência das idéias que formam sua crença é material, pois suas idéias são seus atos materiais inseridos em práticas materiais, regidas por rituais materiais, os quais, por seu turno, são definidos pelo aparelho ideológico material do que derivam as idéias desse sujeito.
Persiste o fato de que, nessa apresentação invertida das coisas, não estamos lidando com inversão alguma, já que constatamos que algumas noções pura e simplesmente desaparecem de nossa nova exposição, enquanto outras, ao contrário, sobrevivem, e novos termos aparecem.
Desapareceu: o termo idéias.
Sobrevivem: os termos sujeito, consciência, crença, atos.
Aparecem: os termos práticas, rituais, aparelho ideológico.
Desaparecem as idéias como tais, na exata medida em que ficou claro que sua existência está inscrita nos atos ou nas práticas regidos por rituais que se definem, em última instância, por um aparelho ideológico. Assim, evidencia-se que o sujeito age na medida em que “é agido” pelo seguinte sistema: uma ideologia existente num aparelho ideológico material, que prescreve práticas materiais regidas por um ritual material, práticas estas que existem nos atos materiais de um sujeito que age, com plena consciência, de acordo com sua crença.
Mas essa própria apresentação revela que preservamos as seguintes noções: sujeito, consciência, crença, atos. Dessa série, extrairemos de imediato o termo central decisivo, do qual depende tudo o mais: a noção de sujeito.
E formularemos prontamente duas teses conjuntas:
1. Não existe prática, a não ser através de uma ideologia, e dentro dela;
2. Não existe ideologia, exceto pelo sujeito e para sujeitos.
Não existe ideologia, a não ser para sujeitos concretos, e essa destinação da ideologia só é possível pelo sujeito, ou seja, pela categoria de sujeito e seu funcionamento.
A categoria do sujeito é constitutiva de qualquer ideologia, mas, ao mesmo tempo e imediatamente, acrescentamos que a categoria do sujeito só é constitutiva de qualquer ideologia na medida em que toda ideologia tem a função de “construir” indivíduos concretos como sujeitos. É nesse jogo de dupla constituição que toda ideologia funciona, não sendo a ideologia mais do que seu funcionamento nas formas materiais de existência desse funcionamento.
A função ideológica do reconhecimento, que é uma das duas funções da ideologia como tal (sendo seu inverso a função do desconhecimento).
Reconhecer que somos sujeitos e que funcionamos nos rituais práticos da mais elementar vida cotidiana só nos dá a consciência de nossa prática incessante do reconhecimento ideológico, mas não nos fornece, em nenhum sentido, o conhecimento (científico) do mecanismo desse reconhecimento.
Assim, para representar porque a categoria do sujeito é constitutiva da ideologia, que só existe ao construir sujeitos concretos em sujeitos, emprega-se um modo especial de exposição: suficientemente concreta para ser reconhecida, mas abstrata o bastante para ser pensável e pensada, dando origem a um conhecimento.
A ideologia interpela os indivíduos como sujeitos. Já a ideologia é eterna, devemos agora eliminar a forma temporal em que expusemos seu funcionamento e dizer: a ideologia sempre já interpelou os indivíduos como sujeitos, o que equivale a deixar claro que os indivíduos são sempre já interpelados pela ideologia como sujeitos, o que nos leva, necessariamente, a uma última proposição: os indivíduos são sempre sujeitos, os indivíduos serem abstratos em relação aos sujeitos que eles sempre já são. Essa proposição talvez pareça paradoxal.
Percebemos que a análise e estudo sobre os aparelhos ideológicos de Estado é algo complexo, com teses e fases a serem estudadas e analisadas. Muitas vezes a idéia, tese pode até parecer paradoxal, necessitando de uma observação aprofundada de seus elementos, para a compreensão.
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